domingo, 28 de junho de 2015

Imaginário

Encharcada de mariposas, peixes e musgo
 Nesse lamaçal prenhe de vazio
Sigo cálida e devagar
No caminho, inimigos sorridentes: Durand, Bashô, Cortázar e o velho pantaneiro
minhas mãos eninham a história
Tecem o mito
 Do rio caudaloso
Da faca amolada

sábado, 6 de junho de 2015

Coisando



E não é que eu e você tinha que dar em alguma coisa?
Coisa que dura

Que sacode a caixola
Alegra o peito
E faz a gente virar outra coisa
Coisa vivida
Invivida
Delirante
Café sem açúcar
Camarão em flor
Fumaça feliz
Mar azul
Letra minha
Poema amigo
Entra no ouvido e grita
Não sei de nada
Sei sim
Eu virei coisa tua
E tu, coisa minha?

sábado, 18 de janeiro de 2014

Tiro certeiro

Acordo depois de uma noite conturbada. Pesadelos, sonhos e delírios me atormentaram madrugada adentro. A primeira coisa que escuto do meu namorado é que o chamei durante a noite e soltei um firme "é isso mesmo!". Não foi uma afirmação sonolenta, mas uma constatação direta e impaciente. Típico da minha rotina de professora da educação básica. O maloqueiro me interpela e solta uma piada infame em meio ao tumulto da aula. Digo que "é isso mesmo!" e pronto. Acabou. Agora é esperar até o final do mês para receber os meus dois salários mínimos de direito. Pouco menos de 1.500 reais com os descontos, líquido, não são suficientes nem para manter uma dieta balanceada. Não posso me dar ao luxo nem de comprar uns morangos no sinal de trânsito. Decadência. Mal coloco o pé para fora da cama e escuto três estrondos. Fogos ou tiros? Mais um, dois, três, quatro. Sete disparos no total. Ligo o rádio imediatamente. Toca uma música internacional romântica no dial. Me irrito. Vou pra internet e os blogues me atualizam do acontecido. Uma briga num bar. Dois morreram por arma de fogo. Um está hospitalizado. Fora ferido por uma arma branca. Provavelmente uma peixeira. Vou fazer café. Enquanto corto o pão, o café esfria. Saio para o trabalho. Ao entrar em sala de aula, não encontro um dos maloqueiros que tento sutilmente relevar todos os dias. Todo o sangue do meu corpo corre para as extremidades. A mão gela. Os pés adormecem. Minha vida mais parece um filme de Alejandro Gonzales-Iñarritu.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Verdejantes

No dia vinte de dezembro, véspera do meu aniversário, parti rumo à minha casa. A casa que partilhei durante quase trinta anos com os meus pais. Ali aprendi sobre ternura, raiva, mágoa, amor incondicional, resiliência, generosidade e um montão de coisas que se espera da relação pai-mãe-filha-filho. Além da casa, regressava à cidade que me permitiu experiências reveladoras sobre essa estranha amálgama entre o ser na alteridade e o existir. Desliguei o gás, tirei os eletrônicos da tomada, arrumei as malas e entrei no carro. Parti a 130km/h rumo ao encontro com o afeto construído em uma vida. No dia 21, tentei reunir alguns amigos em torno de uma mesa para jogar conversa fora, falar barbaridades, travar críticas densas e rir um bocado. Em poucas horas percebi que nenhum deles teria tempo para tanto. O engarrafamento, o Natal, as férias, o trabalho, os filhos, os problemas. Tudo contra todos. Dois dias depois fui chamada de " jumenta" no trânsito. Cortou meu coração. Ele nem sequer me conhecia. Para quê? Por quê? Seguiram-se quase vinte dias assim. Casa, pai, mãe, irmão, namorado e a clareza que a vida não é fácil. Enquanto essas divagações filosóficas-etílicas iam ganhando corpo, comecei a organizar minha volta ao sertão, com certa ansiedade, diga-se de passagem. Tão homeopática que confundi com resfriado, insônia e desinteria. Na estrada, com mais três amigos do trabalho, o tédio tomava conta. 630 km numa rodovia federal brasileira é só para os fortes. A cada crise no meio do caminho, quase 8 horas de viagem geram discórdias e desquites, alguém dava o tempo restante da aventura com a intenção de acalmar os ânimos: "ainda faltam 4 horas". "16:30 a gente chega" ou a clássica frase eufórica "já chegou em Bom Nome". "Já chegou em Bom Nome" significa "deixem de confusão que agora já tá perto". De repente, em meio ao asfalto fervente, reluzindo pontos brilhantes de vidro misturado com o piche, avista-se no horizonte uma comunhão de nuvens cinzentas. Alguém comenta que escureceu. Pingos tímidos começam a resvalar no pára-brisa. As gotas de chuva se desavergonham e começam a correr grossas, densas, parrudas por todos os lados. Digo que está tudo tão verde. O outro comenta que a vegetação se adensou. Devagarinho na mente e veloz na pista, sinto um desejo sinérgico dentre todos os companheiros de viagem de querer mais desse toró. Em meio a incontáveis bois, vacas, burros e cavalos mortos na beira da estrada, penso que o sertão propicia experiências sensoriais muito poéticas. O entardecer é de um conjunção de laranjas oníricos. As dimensões do meio são tão extremas que dá vontade de tocar no céu e de guardar as serras em forma de animais no bolso. A natureza é tão poderosa que só precisa de um tiquinho de água para enverdecer. Os cheiros e sons sempre intensos e perenes. Saio na rua para comprar leite e água mineral. Os gritinhos da meninada correndo na rua aplacam qualquer desespero. Agora mesmo estou sentindo o cheiro do café orgânico que comprei de um produtora local e que incensa a minha casa. É sinestesia pura. É a beleza dialética do olhar arrebatado de quem se sente em casa. Que a natureza nos escute. Por via das dúvidas, rogo a prece mais uma vez: "Dai-nos chuva em abundância, glorioso São José!"

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Varanda

Fazia um calor do cão e só queria ficar em casa. Ligar o ventilador, o umidificador de ar e relaxar ouvindo King Crimson. São 15h de um sábado e preciso buscar o meu marido na rodoviária. Chego 15h10 e sento num banco de madeira. Feio, velho e sujo. O calor começa a me consumir. Adentra em cada poro. Sufoca.Tortura. O ar entra fervente pelas minhas narinas. O coração acelera e uma aflição repentina toma o meu corpo. Vou no botequinho da esquina e compro uma água mineral. Volto ao banco e sento. Me perco olhando para uma hospedaria de fronte à rodoviária. As janelas estão abertas e o bar do térreo lotado. Vejo uma rede decrépita, carcomida pelo tempo no relance de um dos quartos. Penso nos tipos que dormem ali. Me pergunto se todas as vidas são tão vertiginosas e caóticas quanto a minha. Será que todo mundo acorda tão desesperado quanto eu? Viver assim beira o insuportável. Digo mais: é inaceitável. Agora mesmo penso que preciso de uma folga. Quem sabe colocar rédeas nesse dia-a-dia insano. Outras vezes penso que já sou uma quase balzaca e que já está tudo feito. É o insondável e o imutável tomando os meus dias. Quando a gente torna a arte um vício, uma compulsão, só resta explorar os subterrâneos. Cavucar, cascavilhar. Buscar o que está abaixo da superfície e que não é tão profundo à ponto de ser aplacado com psicanálise. O pior é que, chegando neste platô, não dá mais para regressar à superfície. Acabou. Penso que um antropólogo ficaria feliz aqui nessa varanda improvisada. A fauna abissal e subumana do meu entorno é farto material de análise. Material humano, é claro. Todos as pessoas que me rodeavam naquela rodoviária singela e torpe são gente que transbordou fronteiras, gente acostumada a viver no limite. No limite de suas condições materiais e no limite do existir. Errantes da colonização.Retirantes do capitalismo grotesco. A maioria não tem emprego fixo e subverte todas as leis e possibilidades do aceitável. Está sentada ali nas imediações uma família de albinos. São dois albinos adultos e três crianças. Me dá um pouco de aflição acompanhá-los. A pele leitosa desse povo não aguenta o sol penetrante daqui. As crianças têm os braços e rostos cobertos de feridas úmidas. Meninos e meninas perebentos. A adaptação sobre a qual versava Euclides da Cunha, naquela metáfora icônica sobre o sertanejo ser antes de tudo um forte não fazia sentido algum para essa família. Pareciam ser todos muito frágeis. Transparentes mas marcados pelo estigma da miséria. Torço para que estejam indo embora. Para todo o sempre. Volto a vista novamente para a hospedaria. Não vejo os hóspedes, apenas uma mulher que sai dali de dentro com um vestido de algodão, com uma estampa bem popular, todo esvoaçante. Meio coroa, mas com as carnes ainda duras. Grita algo que não entendo com um casal de bêbados que conversava na calçada. Volta para o bar e sai com um cigarro aceso que entrega para a mulher embriagada. O que parecia ser uma tensão, era puro afeto. Solidariedade humanista. Achei bonito. O casal segue andando em direção à rodoviária. Entram e sentam-se perto de mim. Não consigo tirar minha atenção deles. A mulher não tinha um dente sequer visível na boca. Assobiava ao invés de falar. O homem grunhia em réplica. Debatiam assim como eu e meu marido, quando discutimos os referenciais teóricos de nossas teses de doutorado. Ela segurava o cigarro com certo charme e cruzava as pernas sensualmente. Pernas grossas, roliças. Era impositiva e dominante na relação. Uma feminista. O homem parecia ser compreensivo e doce. Gesticulava com virilidade e segurança. Sentia nele um esforço em refletir e ceder naquele diálogo.Antes de chegarem próximo de um consenso, levantaram-se e perderam-se entre os raios de sol escaldantes do sertão. Senti uma fisgada no peito. Seguiram rumo ao infinito.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

14/10

"Sua pressão deu 14/10. Estranho..." "Alguém na sua família é hipertenso?
"Sim, meu pai."
"Tome essa listinha. São algumas recomendações do que ele deve comer"
"Obrigado, Dr. Ele vai gostar"
"Toma algum remédio?"
"Sim, Nifedipina"
"Não. Eu quero saber se você está tomando algum remédio"
"Aaahhh, tá."

terça-feira, 11 de maio de 2010

O natimorto

Aos 20 anos larguei a vida boemia e os excessos mais prosaicos.Bebo socialmente, não fumo e não uso entorpecentes. Faço sexo seguro, nado duas vezes por semana, cortei carnes da minha alimentação, como cereais, raízes e bebo sucos naturais.Vou ao médico anualmente e, aos 25 anos, o saldo é o seguinte: hemorróida, suspeita de glaucoma,enxaqueca, colesterol alto, ansiedade e depressão.Morre-se de qualquer jeito.